TJBA - DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO - Nº 3.197 - Disponibilização: quinta-feira, 13 de outubro de 2022
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trariamente como se fosse dono. Para que se perfaça o crime de apropriação indébita pressupõe-se o atendimento dos seguintes
requisitos: a) a vítima deve entregar voluntariamente o bem, significa dizer, a posse ou a detenção deve ser legítima; b) posse ou
detenção desvigiada: a posse ou a detenção exercida pelo agente deve ser desvigiada, isto é sem vigilância da vítima; c) a ação
do agente deve recair sobre coisa alheia móvel; d) verificação da inversão do ânimo da posse, após obter legitimamente a coisa,
o agente passa a agir como se fosse seu dono. A consumação ocorre no momento em que o agente transforma a posse ou a
detenção que exerce sobre o bem em domínio. O tipo ainda prevê uma majorante de pena consistente na qualidade pessoal do
agente. Assim, a pena é aumentada se a coisa é recebida pelo agente em razão da atividade que desempenha (168, § 1º, III).
No caso dos autos, comprovou-se que a ré recebia os valores correspondentes a débitos dos clientes da empresa (vítima), de
forma legítima, em razão da função que exercia, operava a quitação dos débitos e vertia os valores recebidos em proveito próprio. A acusada era empregada da vítima e encarregada da quitação das contas dos clientes e lançamento em um sistema informatizado, de forma que detinha a confiança da vítima para a atividade desenvolvida. Assim, consoante afirmado na denúncia,
havia relação de confiança entre a vítima e a acusada, não havendo vigilância sobre o desenvolvimento do trabalho da ré. A
acusada fora admitida na empresa em 2000 e as fraudes ocorreram em 2013, portanto, passados mais de uma década de serviços prestados, confirmando-se a relação de estabilidade e confiança que existia entre a empregada e seu empregador. Ao receber os valores dos clientes, fraudar o sistema de informática, e depositar esses valores em conta bancária própria, revela-se o
ânimo de assenhoramento definitivo (animus rem sibi habendi) por parte da imputada. Neste sentido, a perícia contábil concluiu
que () “Queira o doutor perito informar se é possível afirmar que a obreira se apropriou de alguma importância da empresa reclamada. Resposta: a partir da microfilmagem de cheques de clientes, pudemos confrontar valores íntegros e fragmentos de títulos
com importâncias registradas em cheques depositados na conta bancária pessoal da reclamada”. () Avaliando as razões da ação
movida pela empresa contra a Ré e em fac dos documentos juntados com a inicial e dos resultantes da quebra de sigilo bancário,
ordenado pelo MM Juízo do Trabalho - especialmente os extratos e cópias de cheques, encontrados nas contas bancárias da Ré,
em cotejo deses documentos com as Notas Fiscais de Venda de Serviço juntadas aos autos e disponíveis na empresa, podem
os ilustres Louvados atestar se os depósitos encontrados nas contas bancárias da Ré são provenientes de pagamentos de títulos
ou notas ficais da empresa, feitos pelos clientes? Resposta: Analisando os documentos presentes no processo, podemos perceber cheques de clientes com valores idênticos a de títulos emitidos pela empresa, porém, cheques estes encontrados depositados na conta bancária da Sra. Luciene Silva.( fl.568). A perícia contábil demonstra que os valores recebidos pela ré não retornaram aos caixas da empresa, e que também não houve transferências bancárias entre a empresa e a acusada. São as conclusões:
Podem os ilustres louvados confirmar se os títulos/notas fiscais apontados pela Autora na petição inicial desta ação estão até
hoje em abertos - não pagos? Em caso positivo, os Senhores podem aquilatar a causa da ausência de pagamento de tais valores? Resposta: Após análise minuciosa dos relatórios de Títulos a Receber, confrontamos os títulos quitados realizando conciliação bancária nas contas da reclamante. No entanto, diversos pagamentos não foram encontrados na conta bancária da SODIC.
(...) 05) Queira a perita do Juízo informar se o reclamante utilizava a conta bancária da obreira para realizar operações financeiras da empresa. Resposta: A presente perita não possui provas contundentes para responder tal quesito. Porém, não foram encontradas transferências bancárias entre a reclamante e a reclamada. ( fl.568). Os peritos contábeis afirmaram que “os lançamentos irregulares influenciavam diretamente os relatórios diários de entrada e saída da empresa, pois, como o sistema deixava
de computar o título devido, não era acusada a entrada deste valor no caixa, pois o título não mais existia em aberto para tais
fins. Posteriormente a estes lançamentos no sistema, a reclamada depositava os valores monetários na sua própria conta bancária. Assim, foi encontrado no período analisado o montante de 385.59,19 (trezentos e oitenta e cinco mil reais, quatrocentos e
cinquenta e nove e dezenove centavos)”. Em conclusão, afirmaram os peitos: “Verificamos que existe valores depositados nas
contas bancárias da reclamada, valores estes referentes a títulos emitidos pela empresa do reclamante e não constantes coo
entrada na conta bancária do mesmo durante todo o período analisado, e que resultou em valor em favor do reclamante no montante de 385.59,19 (trezentos e oitenta e cinco mil reais, quatrocentos e cinquenta e nove e dezenove centavos) ...” Quanto ao
delito de estelionato, vem assim estabelecido no Código Penal: Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em
prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. Tutela-se a inviolabilidade patrimonial, aviltada
pela prática de atos enganosos pelo agente. Pune-se aquele que, por maio da “astúcia”, da “destreza”, do “engodo”, da “mentira”,
procura despojar a vítima do seu patrimônio fazendo com que ele entregue voluntariamente a coisa visada, evitando, assim, retirá-la por meios violentos. Em suma, o agente busca lesar a vítima em seu patrimônio, de maneira sutil, mas sempre segura
(Cunha, Rogério Sanches. Manal de direito penal. Juspodivm, 2022. p. 441). Deve ser integrado de três elementos: fraude, vantagem ilícita e prejuízo alheio. A lesão patrimonial deve ser realizada por meio malicioso, podendo ser o artifício (encenação
material mediante uso de objetos ou aparatos aptos a enganar); o ardil (astúcia, conversa enganosa); ou qualquer outro meio
fraudulento. O meio escolhido dever, no entanto, ser apto a ludibriar alguém. A acusada, dotada de má-fé, fraudou o sistema de
informatização contábil, preenchendo as datas das quitações das dívidas dos clientes retroativamente, de forma que o sistema
não constatasse débitos pendentes nos relatórios. Contudo, é preciso ressaltar que o artifício, ardil, ou outro meio fraudulento”
utilizados pela acusada era, de fato, o meio empregado para manter o exaurimento do crime de apropriação indébita. A manipulação do sistema informatizado de controle de contas, com inserção de dados falsos, era o caminho percorrido pela ré com o
desiderato de manter insondável a sangria de valores da empresa em proveito pessoal. Na verdade, a fraude ao sistema de
contas vinha como segurança da impunidade da apropriação indébita, como meio de manter incólume o aproveitamento dos
valores recebidos. A vantagem ilícita, que também é objeto do crime de estelionato, na verdade, consumou-se na inversão da
posse com a apropriação dos valores legitimamente recebidos pela ré (animus rem sibi habendi) no momento em que operava a
quitação das dívidas dos clientes da vítima, função para a qual era designada. Assim, reitere-se, que o artificio, o ardil ou o meio
fraudulento empregado pela acusada teve por escopo a manutenção do delito de apropriação indébita e não a execução de um
crime de estelionato propriamente dito. Veja-se que elementar apta a diferenciar as condutas do estelionato e da apropriação
indébita é o dolo; nesse a malícia do agente surge com a posse da coisa, já no delito de estelionato a intenção criminosa é anterior à posse pelo agente. Isto posto, fica fácil perceber que a conduta da ré se amolda ao tipo de crime de apropriação indébita,
devendo ser retirada a imputação do crime de estelionato. Dito isto, julgo procedente em parte o pedido para condenar a ré LU-